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Espiões da era digital


Documento secreto revela como os Estados Unidos espionaram ao menos oito países – entre eles o Brasil – para aprovar sanções contra o Irã. Evitar que o Irã faça uma bomba atômica tem sido um dos grandes desafios da diplomacia atual. O programa nuclear iraniano foi criado nos anos 1950, cresceu depois da revolução islâmica de 1979 e, nos últimos anos, se tornou uma iniciativa clandestina, promovida à revelia dos organismos internacionais de inspeção. Ninguém hoje sabe quando – ou se – o Irã fará a bomba. Sabe-se, contudo, que a posição iraniana tem se revelado volúvel, imprevisível e, para a maioria dos países, pouco confiável. Em fevereiro de 2010, o então presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, quebrou um acordo verbal e anunciou que enriqueceria urânio em seu território, ao contrário do que estipulava a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), organismo da Organização das Nações Unidas (ONU) que zela pelo uso pacífico do aparato nuclear. Os Estados Unidos pressionaram por uma nova rodada de sanções internacionais – seria a quarta – e decidiram ir ao Conselho de Segurança da ONU. Por iniciativa do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil, numa atitude que misturava ousadia e ingenuidade, apresentou-se como mediador do conflito. Nunca antes o Brasil se colocara, numa querela internacional, entre uma superpotência e um de seus maiores inimigos. Mas nosso presidente era Lula – e ele acreditava que faria diferença.

A sugestão brasileira era que Ahmadinejad se comprometesse a enriquecer urânio fora de suas fronteiras. Mais exatamente na Turquia, país que, como o Brasil, ocupava um assento rotativo no Conselho de Segurança da ONU. Tal proposta fora aventada outras vezes – e nunca antes na história do Irã fora levada a sério. A situação era tensa, como nunca antes na história recente do Conselho de Segurança. Ele estava dividido. Brasil e Turquia trabalhavam por uma solução negociada e eram contra as sanções. Rússia e China, membros permanentes do Conselho, com poder de veto, emitiam sinais contraditórios. Havia dúvidas também sobre como votariam Bósnia, Gabão, Nigéria, Líbano e Uganda, integrantes rotativos que pouco externavam suas opiniões. Para evitar o risco de uma derrota no Conselho (são necessários nove votos em 15 para aprovar sanções), os americanos recorreram a uma solução tão antiga quanto o Egito dos faraós: a velha espionagem. Desde que veio à tona a prática de monitoramento sistemático de comunicações pelo governo americano, pela primeira vez é possível narrar um caso concreto. Um documento classificado como “TOP SECRET” (ultrassecreto, o mais alto grau de sigilo), a que ÉPOCA teve acesso exclusivo, revela o que aconteceu e deixa claro o papel decisivo desempenhado no caso pela então embaixadora americana na ONU, Susan Rice.

“Velha” talvez não seja o adjetivo mais adequado para uma atividade que se transformou radicalmente na era digital. Em lugar do cenário da Guerra Fria, um mundo bipartido entre Estados Unidos e União Soviética, vivemos a era da diplomacia multilateral. Cada país tem seus interesses, visões e desejos. Em vez dos agentes secretos infiltrados nas nações inimigas, como James Bond – o espião criado por Ian Fleming com suas pistolas munidas de silenciador e licença para matar – ou George Smiley – seu congênere que habitava o universo cheio de bruma, traições, deserções e mensagens secretas criado por John Le Carré –, hoje esse mundo envolve programadores e matemáticos capazes de decifrar códigos intrincados diante de suas telas de computador. No lugar das escutas clandestinas instaladas cirurgicamente, hoje é possível fazer varreduras amplas nas redes de telecomunicações e na internet. No lugar dos folclóricos espiões da CIA, a histórica Agência de Inteligência dos Estados Unidos, surge das sombras a NSA, a Agência Nacional de Segurança, especializada na guerra de informação na era digital.

Em busca de protagonismo no cenário internacional, Lula foi a Teerã em 17 de maio de 2010 – de lá saiu exultante. Trazia na mala um acordo assinado por Brasil, Irã e Turquia, em que Ahmadinejad se comprometia a enriquecer urânio fora de suas fronteiras, dentro das determinações da AIEA. No dia seguinte, a secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, afirmou que os cinco integrantes do Conselho de Segurança da ONU – além dos Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China –haviam decidido levar as sanções a votação. O acordo assinado por Ahmadinejad não era considerado confiável. A diplomacia brasileira estranhou, pois recebera sinal verde do governo de Barack Obama para prosseguir com as negociações. Ao longo do mês de maio, Lula gastou sapato e saliva defendendo as boas intenções de Ahmadinejad. Em vão. No dia 9 de junho de 2010, Susan Rice estava exultante. Por 12 votos a favor, dois contra (Brasil e Turquia) e uma abstenção (Líbano), os Estados Unidos aprovaram as sanções. Algo mudara radicalmente em relação ao cenário nebuloso de meses antes. Quando Susan Rice entrou no plenário para a votação, sua delegação já tinha certeza da vitória – e venceu.

O documento obtido por ÉPOCA revela como os EUA espionaram oito integrantes do Conselho de Segurança, entre os quais ao menos um permanente (França) e três não permanentes (Brasil, Japão e México), durante as negociações. Todos esses países são considerados “aliados”. Pela ação da NSA, os Estados Unidos descobriram como votariam. Isso lhes deu uma posição de vantagem nas discussões com os demais países-membros. O documento, intitulado “Sucesso Silencioso”, celebra o sucesso da empreitada. A previsão era que fosse aberto ao público somente em 2035. Documentos desse tipo são proibidos para estrangeiros (carregam o selo “NOFORN”, ou “no foreigners”).

Procurado por ÉPOCA, o governo dos Estados Unidos, por intermédio de sua embaixada em Brasília, informou que não comenta nenhum tipo de atividade secreta e que, portanto, não se pronunciaria sobre o assunto. O porta-voz substituto do secretário-geral da ONU, Eduardo del Buey, afirmou que “todos os países-membros da ONU são obrigados por lei a respeitar a privacidade de comunicações diplomáticas e espera-se que o façam”. Em resposta a ÉPOCA, a embaixada da França enviou declarações dadas em julho pelo presidente François Hollande. Ele disse que “não podemos aceitar este tipo de comportamento entre parceiros e aliados” e pediu que os EUA “parem imediatamente”. “Não podemos ter negociações, transações em qualquer área, a não ser que haja essas garantias”, afirmou. “Falo pela França, mas isso vale por toda a União Europeia e, eu diria, por todos os parceiros dos EUA. Sabemos bem que há sistemas que devem ser controlados, notadamente pela luta contra o terrorismo. Mas não penso que seja dentro de nossas embaixadas ou da União Europeia que exista esse risco.” ÉPOCA contatou as embaixadas de Japão e México. Nenhuma das duas respondeu até o fechamento desta edição. O Itamaraty também não quis se pronunciar. 





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