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Manual de processo penal: observações sobre o processo de Kafka

Por Maurício Sant’Anna dos Reis
“Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum. […]”[1] Esta é a primeira frase de “O Processo” de Kafka; talvez não seja tão impactante quanto a primeira frase de “A Metamorfose”[2], ainda assim, diz muito sobre o que transcorrerá a seguir.
Nesta obra, Kafka nos convida a mergulhar nos labirintos intransponíveis da justiça, ilustrado aqui pelo processo criminal. Correndo o risco de, por um lado revelar demais, por outro de ser superficial[3], pretendo fazer algumas observações quanto a este brilhante texto, comparando com o processo penal na atualidade. Para tanto, em um arriscado recorte, pretendo observar a inquisitorialidade do sigilo que permeia todo o processo narrado, impossibilitando a defesa nesse mesmo processo e a consequente ausência de imparcialidade, nem sequer objetiva, do julgador.
Em sua narrativa, Kafka constrói um ambiente angustiante e claustrofóbico, como que se, preso entre muros de um labirinto processual, Josef K. Se visse sendo comprimido pelas paredes que o cercam. Esse ar pesado e pestilento se torna possível principalmente pelo sigilo que pesa sobre o processo de K. Em nenhum momento o leitor (nem o protagonista) é convidado a tomar conhecimento das acusações formuladas. Sequer conjecturas são possíveis, a menos não de maneira temerária. Por não ter franqueado seu acesso aos autos, K. Somente pode se socorrer de seu advogado que, contudo, limita-se a afirmar que seu caso é “muito grave”. Inconciliável, K. Procura saber de seu processo por meios pouco ortodoxos, ora com a mulher do oficial de justiça[4], ora com Leni a enfermeira do advogado[5]. Não há saída; é impossível saber o teor da acusação, é impossível defender-se. Nesse realidade, os meandros jurídicos são mais facilmente transpostos pela política, pelo prestígio e pela boa relação com o juiz do que pela técnica e por qualquer ideal de justiça.
A busca pela justiça, pelo pouco que pode perceber K., portanto, está dispensada, valendo somente o prestígio para um veredito favorável. Em um campo marcado pela vaidade, melhor forma de prestígio não pode haver senão a angariada com aquele que é responsável pela imagem dos magistrados – ou ao menos a imagem que os próprios fazem de si mesmos – o pintor de retratos do tribunal. Novamente a visão é angustiante e claustrofóbica, encerrado em um pequeno aposento, cercado por todos os lados por meninas, com Titorelli, o pintor de retratos, K. Tenta, desesperada e inutilmente compreender as acusações que contra si pesam. Com certa razão, parece-lhe que a única forma de conhecer as acusações que contra si pesam é interrogando o responsável por sustentar a vaidade dos juízes. Em uma passagem, após K. Prestar as poucas informações que podia, Titorelli este é categórico em afirmar que como pintor pode livrá-lo das acusações, o que causa interrogação em K.: “Como vai fazê-lo? […] O senhor mesmo disse há pouco que o tribunal é totalmente inacessível às provas.” ao que responde o pintor “– Inacessível apenas às provas que se apresentam perante o Tribunal – disse o pintor, erguendo o dedo indicador como se K. Ainda não tivesse notado uma distinção sutil. – Mas nesse sentido as coisas mudam quando se procura agir por trás do tribunal público, ou seja, nas salas de entrevista, nos corredores ou, por exemplo, aqui no ateliê”[6].
Em última análise, não existe nem poderia existir qualquer possibilidade de imparcialidade[7] ou de justiça[8]. O processo não assume aqui o intuito de desvelar o caso ou mesmo instrumentalizar futura condenação, caso vencida a possibilidade de absolvição. Na obra kafkiana, é mero formulário que leva para o inevitável fim. Em sua incessante busca por respostas K. Em nenhum momento chega perto de descobrir por que está sendo processado apenas é jogado de um lado para outro, subindo e descendo as infindáveis escadarias daquilo que se tem por justiça. Esse processo, tão absurdo, se torna ainda mais grotesco quando observado sua semelhança com o processo penal na atualidade, ao menos na perspectiva do processo penal brasileiro. Garantias são eliminadas, direitos suprimidos, ordens procrastinadas e todo o sofrimento relegado ao réu que, como regra, quando conhece dos fatos pouco, pode fazer para se defender. O Processo de Kafka é leitura fundamental para compreensão do atual sistema de justiça, embora, talvez, por se falar em bizarro, Kafka ainda tenha muito a aprender conosco.
[1] KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. 1. Ed.7. Reimpr. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997 (1988), p. 7.
[2] “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Sansa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. […]”. KAFKA, Franz. A metamorfose seguido de o veredicto. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 11.
[3] Mormente em se tratando de um autor denso e profundo como Kafka.
[4] “– O senhor com certeza quer melhorar alguma coisa aqui, não é? – disse a mulher, lenta e perscrutadora, como se estivesse falando alguma coisa tão perigosa para ela quanto para ele. – Já concluí isso do seu discurso, que pessoalmente me agradou muito. Porém escutei só uma parte, o começo eu perdi e durante o final eu estava deitada no chão com o estudante. É tão asqueroso aqui – disse ela depois de uma pausa e segurou a mão de K. – O senhor acredita que vai conseguir alguma coisa?” KAFKA, Franz. O processo, p. 59.
[5] “– Eu o conheço – disse Leni erguendo também os olhos para o quadro. – Ele [juiz] vem aqui frequentemente. O quadro é da sua juventude, mas nunca poderia ter sido nem mesmo semelhante ao retrato, pois tem uma estatura minúscula. Por isso se faz encompridar, pois é insensato e vaidoso, como todos aqui. […]” KAFKA, Franz. O processo, p. 119.
[6] KAFKA, Franz. O processo, p. 162.
[7] Aliás, impossibilidade essa marcada simbolicamente no encontro de K. Com o pintor: “A visão do quadro pareceu-lhe dar vontade trabalhar, ele arregaçou as mangas, pegou alguns lápis e K. Observou como, sob as pontas trêmulas deste lápis, se formava, junto à cabeça do juiz, uma sombra avermelhada, que se esvaía na forma de raios em direção à borda do quadro. Aos poucos, esse jogo de sombras rodeou a cabeça como um adorno ou uma alta distinção. Mas em torno da figura da Justiça ficou claro, com exceção de uma tonalidade imperceptível: a figura parecia avançar de uma maneira especial nessa claridade, quase não lembrava mais a deusa da Justiça, nem tampouco a da vitória, agora se assemelhava por completo à deusa da Caça. […]” KAFKA, Franz. O processo, p. 158.
[8] A célebre passagem na Catedral parece, enfim, encerrar as esperanças de K.: “[…] ‘Todos aspiram à lei’, diz o homem, ‘como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?’ O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio berra: ‘Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois a entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”. KAFKA, Franz. O processo, p. 232.

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