Justiça dos Homens
Assim que cheguei no Juizado Especial de Curitiba, ao me aproximar da entrada ouvi diversos estampidos... Na hora não pensei em nada, apenas que aquele barulho era estranho. Mas, de repente, a Secretária Maria Luíza saiu correndo lá de dentro, gritando que estava havendo um tiroteio no saguão, que haviam mortos e vários feridos pelo chão...
Minha primeira reação foi querer entrar, para ajudar aos feridos, mas logo percebi que estava completamente impotente naquela situação.
A Secretária queria sair dali imediatamente e suplicava para que me protegesse também. Aos gritos disse que os tiros haviam sido disparados quase na porta do fórum.
- Ele vai sair... Ele vai sair... Proteja-se dr. Francisco – gritava ela, desesperada.
Minha única reação foi me esconder atrás do muro e ficar ouvindo os tiros que ainda ocorriam lá dentro.
Passado algum tempo, todo barulho cessou e diversas pessoas começaram a sair do fórum, apressadamente (no local deviam estar cerca de cem pessoas).
Quase todas carregavam um semblante de desespero e estavam sem saber para onde ir ou o que fazer.
Comecei a orientá-las a irem para longe, bem além do portão do fórum, até porque depois daquilo o serviço do Juizado ficaria suspenso. Por vezes necessitei ser enérgico para conseguir que entendessem.
Após algum esforço conjunto, eu e alguns funcionários conseguimos conduzir aquelas pessoas todas para além do portão - que fechamos.
Foi quando percebemos duas mulheres e um homem, que haviam se escondido na cantina do fórum (ao lado da porta de entrada) e que gritavam desesperados por estarem feridos.
Nem sei como conseguimos retirá-los de lá, para que um dos funcionários os encaminhasse ao hospital.
Lembro que antes de entrarem no carro ainda conversaram comigo, contando que o atirador era ex-marido daquela mulher ferida, sendo genro do casal que a acompanhava.
Insistentemente aquelas pessoas afirmavam que o atirador havia ido ao fórum para matá-los (todos), porque era louco!
Aparentavam estar bem, embora a sogra do atirador tivesse um ferimento no peito, o sogro um ferimento no braço (que me pareceu fraturado) enquanto a ex-mulher apresentava um buraco bem abaixo do olho (um furo que sangrava muito). Acredito que o tiro acertou nos óculos dela, que deve ter amortecido o impacto, pois (como soube posteriormente), foi dado a queima-roupa e os óculos estavam em desalinho e meio pendurados (quebrados).
Ela estava conversando normalmente e dirigiu-se até o carro a andar sozinha e bem consciente, apesar do ferimento. Aliás, todos os três estavam caminhando regularmente e conversando como se não estivessem feridos.
Eu tive que apressá-los para irem ao hospital, ou ficariam ali a me contar as loucuras daquele atirador.
Depois que eles foram socorridos, fui verificar se ainda havia mais algum ferido dentro do fórum.
Na medida que os funcionários saiam, eles iam contando sobre o número de pessoas que ainda estava lá dentro. Eles já haviam me informado que o atirador, no desespero de uma fuga, adentrara na sala do Ministério Público - ficando encurralado naquele local e que as poucas pessoas que lá ficaram se transformaram em reféns dele.
Assim, me esgueirei pela entrada para olhar lá dentro. Havia um homem caído, bem no meio do saguão, que me pareceu morto.
Mais adiante estava o policial militar do fórum, de arma em punho, a correr feito um desvairado.
- Tem um morto aqui – disse-lhe eu.
O policial imediatamente me contou que ele estava somente ferido e que ninguém mais havia sido morto ou ferido (a não ser os parentes do atirador). Aquele homem se moveu e me disse que fora ferido na barriga, mas que passava bem.
Eu o orientei a ficar como estava até que o socorro chegasse.
Só então resolvi telefonar para a polícia, para avisar sobre o ocorrido.
Ao ligar fui atendido por uma máquina de gravação, que me pediu para esperar o atendimento. Aquela música que tocou naquele instante tornou-se imensamente irritante e longa - frente a situação.
Ao informar sobre o tiroteio no fórum, o atendente ficou me questionando sobre os dados do local, que devido ao nervosismo eu não conseguia mais lembrar.
O policial militar, que continuava a correr de arma em punho, começou a gritar para que eu desse o código militar de emergência, afirmando que eles viriam atender imediatamente. Gritava para informar sobre os reféns.
Enquanto corria ele ficou gritando o código, para que eu o falasse ao telefone. Mas como a essa altura eu não conseguia entender o tal código, resolvi lhe passar o telefone celular e ele, que não parou um instante sequer, foi com o meu telefone para próximo da porta do Ministério Público - a gritar o código, repetidamente. (Eu só consegui reaver meu celular seis horas depois).
Em questão de minutos o batalhão anti-sequestro chegou e imediatamente os policiais procuraram se inteirar sobre a ocorrência.
Foi nessa hora que soube que o atirador, chegando por trás, agarrou a ex-esposa pelo pescoço – numa gravata – e num movimento brusco a virou e lhe desferiu um tiro – (que pegou no aro dos óculos, penetrando bem abaixo dos olhos). O pai dela, que estava ao lado, então, tentou empurrar o atirador, sendo que esse lhe desferiu o segundo tiro, acertando-lhe no braço esquerdo – (que com o impacto acabou fraturado). A sogra do atirador, então, pulou em cima dele e por isso recebeu o terceiro tiro – (no peito).
O policial do fórum, que estava no outro lado do saguão, reagiu e desferiu dois tiros em direção ao atirador, sendo que esse respondeu aos tiros, mas na tentativa de fugir acabou indo para o lado contrário ao da porta. Nessa hora um ex-policial, que estava ali para uma audiência, tentou deter o atirador, mas esse se livrou dele, acertando-lhe um tiro na barriga.
Ao chegar a sala do Ministério Público, o atirador verificou que não poderia mais sair, pois para isso teria que voltar e enfrentar o policial militar. Resolveu, então, render aos três funcionários que ali estavam e esperar para ver como sairia dali.
Assim que souberam disso tudo, os vários policiais, armados até os dentes - adentraram no fórum.
As imediações foram isoladas, restando o quarteirão inteiro sob o domínio dos policiais de elite. Alguns se posicionaram no telhado, outros no muro e nas ruas do fórum, cercando o prédio com um contingente capaz de enfrentar a todo um batalhão de bandidos.
Lá dentro as negociações se iniciaram e acabaram se arrastando por doze horas seguidas, num clima tenso e progressivo, até que, finalmente, o objetivo final foi atingido.
Os negociadores, os delegados e chefes das várias equipes se posicionaram em uma sala que dava vistas a sala do Ministério Público. Os telefones foram cortados e um técnico fez uma ligação direta entre o ramal do Ministério Público e o daquela sala.
As negociações se iniciaram. A conversa do atirador girou em torno da sua adoração pela ex-esposa e sobre o quanto não suportava ser desprezado por ela.
Ele contou que ela havia ido até a delegacia da mulher, tendo efetuado queixa pelo fato dele estar perturbando a sua tranquilidade. Que na delegacia quis conversar, pedir desculpas e prometer não mais se aproximar da ex-esposa, mas a escrivã não permitiu nenhuma aproximação, afirmando que ele deveria esperar até o dia de ir ao juizado ou seria preso, naquela mesma hora. Disse que só queria uma chance com a ex-esposa – mas que ela estava irredutível. Que acreditava que iria preso após a audiência do Juizado – pois, realmente, estava a incomodá-la, a ponto de persegui-la e querer, insistentemente, ficar perto dela.
O médico psiquiatra o ouvia com paciência e interesse, tendo mediado aquela conversa com sabedoria e maestria.
Aos poucos, o psiquiatra foi captando a confiança do atirador, convencendo-o a entregar-se.
Aquelas conversações começaram a girar em torno do problema amoroso do atirador, atestado pelos familiares dele, que a essa altura haviam sido encontrados e foram trazidos até ali.
As conversações demoraram porque o atirador não conseguia elaborar uma proposta para negociação, apenas acreditando que suas alternativas seriam a prisão perpétua ou a morte, pois para ele aquele amor não correspondido acarretava uma dor eterna. Uma dor que aos poucos consumia todo o seu ser, não havendo outra solução para aquela dor perpétua senão a morte.
Ele acreditava que havia matado sua ex-esposa, bem como aos dois sogros e que, por isso, merecia apodrecer na prisão, devendo ser morto pelos policiais – ou pelos futuros colegas de cela, logo a seguir.
Essas crenças dificultaram as conversações, pois o chefe dos atiradores de elite, queria abatê-lo sem tardar, afirmando que era uma pessoa perigosa e que acabaria matando alguns reféns, para poder morrer também. Asseverava que ninguém sabia se ele havia ou não recarregado a arma e o que ele poderia fazer. Falava isso com uma tal convicção que se não fosse a presença do Corregedor Geral da Polícia naquele local, talvez o atirador não saísse dali com vida.
Mas o psiquiatra começou a controlar a negociação e, aos poucos, foi adquirindo a confiança do atirador.
O psiquiatra então contou que sua ex-esposa e os sogros não haviam morrido e que estavam no hospital. Por isso as conversações se voltaram para a possibilidade de encaminhamento do atirador para um hospital também (para tratamento).
Nesse momento, como os policiais que chefiavam a operação hesitavam quanto a possibilidade jurídica desse tratamento, acabei intervindo e afirmando que:
- A lei estabelecia que a prisão somente era possível aos mentalmente sãos e que as atitudes do atirador, tentando praticar homicídios públicos, para depois morrer, indicavam a existência de um perfil de desequilíbrio – autorizando a pensar que haviam indícios (pelo menos) de insanidade mental.
Conclui afirmando que se ele se entregasse eu seria obrigado a determinar que fosse submetido a exame médico-psiquiátrico, pois a “teatralidade da situação de tentativa de assassinatos públicos, para provocação de sua própria morte, indicava problemas mentais”…
O psiquiatra negociador, nessa hora, atestou que o discurso do atirador era confuso, parecendo ser o de um suicida em potencial e que deveria ser verificada a sua saúde mental, pois existiam sérios indícios quanto a problemas.
O Chefe dos atiradores de elite também insistiu que o achava perigoso e que embora "essa coisa de tratamento fosse próprio para mocinhas", tinha que respeitar o psiquiatra e concordar que o atirador era um louco. Asseverou, por fim, que em vez de tratamento, ele deveria ir direto para o manicômio judiciário.
A partir daí surgiu a proposta real de encaminhamento a um hospital, sendo que o atirador demorou a acreditar que isso seria cumprido.
A resistência do atirador acabou quando o promotor do juizado falou com ele, explicando as possibilidades processuais e atestando que caso concordasse em se entregar iria ficar no hospital - para atendimento e exames.
Foi a partir desse momento que o atirador, convencido, entregou-se calmamente, libertando os reféns.
Interessante pontuar que nessa altura dos acontecimentos uma equipe de televisão estava no local, filmando a tudo, sendo que o atirador usou de teatralidade, aproveitando o seu momento de fama.
Ele veio andando calmamente em meio aos reféns, sendo que foi soltando um a um - até ficar ali, sozinho, sob a forte luz da televisão ficou falando com o repórter – a quem queria dar entrevista sobre sua história de amor eterno e de liberdade pela morte.
Mas antes que continuasse, aproveitando essa distração, os policiais pularam em cima dele e o levaram para longe das câmaras.
Dali ele foi levado diretamente ao hospital evangélico, onde passou dois dias a fazer exames psiquiátricos.
Eu fiquei como juiz responsável tão somente até o início dos exames – sendo que se realmente foram executados e qual foi o resultado – acabei não sabendo. Tudo que ocorreu depois passou a ser de responsabilidade do juiz da vara criminal.
Eu só soube que ele respondeu pelas tentativas de homicídio que praticara. E que foi parar na prisão e lá acabou sendo morto, pelo colega de cela (como havia profetizado).
Segundo disseram ele contratou sua morte a esse colega de cela, que por ser homem de palavra e cumpridor de seus acordos, sem piedade o matou.
Infelizmente tudo isso ocorreu em virtude da falta de informações do atirador quanto ao serviço de psicologia e mediação do juizado especial, pois em seu discurso ele pedia, tão somente, para ser ouvido quanto ao problema que não conseguia resolver...
Caso tivesse aguardado a audiência, segurando seus impulsos letais, talvez nada disso tivesse ocorrido. Mas ele não conseguiu esperar, liberando toda aquela teatralidade e com ela a sua agressividade, para, na sequência, causar imensa discussão sobre sua sanidade.
Essa teatralidade, por outro lado, lhe trouxe alguns poucos minutos de fama, permitindo que, insistentemente, afirmasse em frente as câmaras da TV, que a justiça dos homens nada sabia sobre problemas do coração e que por isso devia respeitar as emoções das pessoas, em vez de apenas querer impor punições, numa tentativa vã de educar pela dor – a quem precisava tão somente de amor…
E aqui é impossível não questionar sobre o que teria ocorrido se aquela escrivã da delegacia da mulher tivesse lhe explicado as possibilidades de uso do serviço de psicologia do Juizado ou, quem sabe, tivesse tido um décimo da paciência do psiquiatra negociador e o ouvido por um pequeno instante.
Mas como a vida acontece como deve acontecer, ela não agiu assim e ele acabou morrendo, provavelmente, na tentativa de provar suas ideias sobre quanto vã seria a justiça dos homens e sobre o quanto precisava de amor…
PS:Não foi possível se confirmar a notícia sobre a morte do atirador, pois não se tratava de fonte oficial.
Surgiu, também, outra versão:
- - que dizia que, no processo, o atirador alegou insanidade, mas essa não foi aceita.
- - que ele havia mesmo contratado alguém para matá-lo, mas que tal contrato não foi cumprido.
- - que isso serviu, tão somente, como motivo de desaprovação psicológica em seu exame criminológico.
- - que tal exame criminológico foi usado para negar qualquer benefício de progressão de pena.
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