Formação médica não pode tolerar abusos
A desumanização em relação ao outro atinge desenhos perversos quando se admite tolerar abusos e discriminação em instituições de ensino.
Antes de me tornar gestor público tive a honra de estudar e trabalhar na FMUSP (Faculdade de Medicina da USP). Nela aprendi o que é buscar a excelência e a obstinação de estar atualizado com o que de melhor se produz no mundo. Lá vivi o respeito ao paciente e o desejo de sempre lutar para oferecer a melhor qualidade de atendimento.
É inaceitável que as dependências dessa instituição possam abrigar episódios de abuso, incluindo denúncias de estupro, de incitação ao ódio e de desrespeito às pessoas. Confio na direção, no corpo docente e nos estudantes da FMUSP para que haja apuração e punição dos fatos corajosamente denunciados por futuros médicos e médicas.
Essa é a única atitude aceitável para reparar o direito de quem foi vítima desses absurdos, para promover o necessário resgate da imagem da instituição e para superar, de uma vez por todas, algumas das equivocadas tradições dentro de instituições formadoras da medicina.
Não é fácil ser médico. Exige desprendimento familiar, dedicação extra aos estudos e lidar com condições de trabalho nem sempre dignas. Aos 17 anos, quando iniciei o curso de medicina na Unicamp, um veterano me perguntou: "Tá pronto para entrar no Vietnã?". A metáfora de uma das guerras mais brutais foram repetidas quando fui trabalhar em um pronto-socorro e numa UTI.
Parte dos ritos e estruturas presentes nas instituições de ensino reproduzem, na prática, lições da formação militar. É como se parte do conteúdo --não curricular, obviamente-- fosse para formar soldados para uma guerra constante, não agentes para aliviar a dor e o sofrimento dos pacientes ou ampliar a autonomia de vida das pessoas.
Os abusos e denúncias relatados revelam dois objetivos dos rituais: o treinamento para subserviência à hierarquia e a desumanização dos futuros "soldados-médicos".
Já é mais do que conhecido o significado da subserviência do calouro aos mais velhos no trote. Sob o manto lúdico, o trote expõe uma forma desrespeitosa e violenta de se travar o primeiro contato com a faculdade. Mas, diferentemente de outras profissões, essa relação de hierarquia se perpetua ao longo de quase toda a formação e atuação.
O veterano de hoje será quem lhe autorizará (ou não) a participar de um procedimento médico no 5° ano ou na residência. Ou o chefe de serviço, que lhe abrirá espaço (ou não) no mercado de trabalho. Uma relação pautada, prioritariamente, pela admiração quanto à conduta e ao conhecimento, mas que, invariavelmente, é decidida pela hierarquia.
A desumanização na relação com o paciente, para alguns, virou condição para suportar ser médico. Não é à toa que os rituais e hinos dos estudantes são caricaturas de práticas que, muitas vezes, ocorrem no interior dos hospitais de ensino: desrespeito sobretudo aos pobres, mulheres, homossexuais e negros.
Some-se a isso um conteúdo curricular que fragmenta o corpo humano, como se o separasse também do próprio ser. Nos livros, sites, congressos e artigos científicos, os futuros médicos são levados a ver partes, não o corpo. As iniciais do nome do paciente e o número do prontuário ou do leito, não o cidadão que tem família, trabalho, vida social.
Das mais variadas formas, inculca-se uma separação entre o ser humano médico e o ser humano paciente. Assim, acredita-se que conseguimos ser mais eficazes na medicina atual. A desumanização em relação ao outro atinge desenhos perversos quando se admite incitar ou tolerar abusos e discriminação no interior de uma instituição de ensino.
Confio e acredito que a FMUSP e a formação médica sairão mais fortes desse episódio. Em uma era em que pacientes, indústria da saúde e sociedade têm acesso a informações e guias de tratamento na internet, o que diferencia um médico do outro, e uma instituição da outra, é, como diria o professor Adib Jatene, "formarmos especialistas em gente".
É preciso que as instituições condenem qualquer ataque aos "direitos de gente" de alunos e pacientes.
Fonte: Folha de São Paulo
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