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Bala, Boi e Bíblia

(*) Samuel Lima

Os leitores d’O Estadão de S. Paulo (ed. 26/04/2015) foram brindados com uma daquelas páginas que expressam o jornalismo como forma de conhecimento social. Falo da reportagem “Cunha impõe pauta turbinado por ‘BBBs’” (p. A6). A matéria assinada pelo jornalista Pedro Venceslau (com a colaboração de Daniel Bramatti, Guilherme Duarte, Igor Giannasi e Nivaldo Souza) apresenta, com base em informações jornalísticas de qualidade, o novo mapa do poder no Congresso Nacional (2015-2019).

Na verdade, o estudo “Radiografia do novo Congresso” (em dezembro de 2014, p. 13), realizado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), entidade criada pelo movimento sindical há 32 anos, já apontava com clareza: “O Congresso eleito em 2014, renovado em 46,59% na Câmara e em 81,48% em relação às vagas em disputa no Senado, é pulverizado partidariamente, liberal economicamente, conservador socialmente, atrasado do ponto de vista dos direitos humanos e temerário em questões ambientais” (Fonte:http://migre.me/pDKq3).

O núcleo do poder na Res-pública deslocou-se, sensivelmente, neste novo período de governo Dilma, do Palácio do Planalto para o território das bancadas que o filósofo Vladimir Safatle (USP) chamou de “BBB”. Safatle avalia o esgotamento do “lulismo” e aponta como fase final do processo que restaria “ao governo ser refém de um Congresso que ele próprio alimentou. Na figura de gente do porte de Eduardo Cunha e seus projetos de implementar o ‘dia do orgulho heterossexual’, entregar o legislativo à bancada BBB (Bíblia, Boi e Bala) e contemplar cada deputado com seu quinhão intocado de fisiologismo, o Brasil encontra a melhor expressão da decadência e da mediocridade própria ao fim de um ciclo” (Fonte:http://migre.me/pDKQd).

A geografia do poder das bancadas BBBs na cena política nacional é cristalina como água de fonte: 373 deputados federais (73% do total de 513 eleitos para a legislatura 2015-2019) atuam nas três bancadas: Bala (Segurança), Boi (Ruralista) e Bíblia (Evangélica). Ou seja, sobram 140 parlamentares (27%) somando todos os partidos com representação na Câmara. Para o Diretor do DIAP, Antônio Augusto Queiroz, “este é o Congresso mais conservador desde a redemocratização, em 1985”.

Vanguarda do Atraso
Venceslau (Fonte cit.) descreve os três principais feitos dessa articulação política, sob a liderança do atual presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Em pouco menos de três meses, esses grupos aprovaram: (a) Redução da maioridade penal: na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a PEC que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos; (b) Estatuto do Desarmamento: criação de comissão específica para revisar o Estatuto, que pode resultar na flexibilização das regras que hoje dificultam o porte de armas no País; e (c) Terras indígenas: considerada uma grande vitória dos ruralistas, com apoio das outras duas, foi criada Comissão Especial para elaborar um texto final sobre a PEC que transfere do Executivo para o Congresso a demarcação de terras indígenas.

A bancada da Bíblia acena ainda com a aprovação do Estatuto da Família, cujo conceito central definiria “família” como um núcleo formado por um homem e uma mulher. Mais recentemente, a mobilização das bancadas BBBs foi decisiva para a recente aprovação do PL 4330 (Terceirização), ainda que não houvesse consenso nestes três grupos: dos 293 deputados das frentes que estiveram presentes, 182 votaram a favor da terceirização, 107 foram contrários e apenas 4 se abstiveram.

O jornalista Leonardo Sakamoto faz uma síntese interessante e pertinente em seu blog, a respeito dessa agenda conservadora do rumo a que ela pode levar o País: “Liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa. Transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores. Redução da maioridade penal para 16 anos. Proibição de adoções por casais do mesmo sexo. Alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição. Redução da idade mínima para poder trabalhar de 14 para 10 anos. Proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal. Aprovação da pena de morte. Fim do voto feminino. Derrubada da República. Revogação da Lei Áurea” (Fonte: http://migre.me/pDMqP).

Quem financia os BBBs?
Um dado muito interessante da excelente reportagem de Pedro Venceslau (e colaboradores) é a fonte de financiamento das bancadas da Bala, Boi e Bíblia. O líder da “Bala”, deputado Alberto Fraga (DEM-DF) é enfático: “Prefiro ser da bancada da bala do que da bancada da mala”, ironiza (Fonte cit.). Bala e mala, a verdade é que Fraga recebeu R$ 80 mil reais da Taurus (indústria de armas) e outros R$ 50 mil da Avícola Catarinense, dos valores declarados oficialmente em sua última campanha.

Outros líderes BBBs, como é o caso de João Campos (bancada da Bíblia, PSDB-GO), “recebeu R$ 350 mil da Gentleman, empresa especializada em escolta armada” (Fonte cit.). Já o presidente da bancada do Boi (Ruralista), Marcos Montes (PSD-MG) foi financiados pelos “grupos tradicionais do agronegócio Agrale e Cutrale”, mas também recebeu R$ 15 mil da Taurus e igual valor da Companhia Brasileira de Cartuchos.

É de Paul Krugman, professor de Economia da Universidade de Princeton (EUA) e prêmio Nobel de Economia de 2008, uma arguta síntese observando a cena política em seu País, que se prepara para a sucessão de Barack Obama – uma disputa que ele caracteriza “plutocracia versus democracia”. Escreveu Krugman: “A direita política sempre se sentiu incomodada com a democracia. Por melhor que esteja a situação dos conservadores nas eleições, por mais generalizado que seja o discurso em favor do livre mercado, sempre há um medo, no fundo, de que o povo vote e ponha no Governo esquerdistas que cobrem impostos dos ricos, deem dinheiro a rodo para os pobres e destruam a economia” (Fonte: http://migre.me/pDN9A).

A caricatura da “destruição da economia” dialoga diretamente com essa vanguarda do atraso que hoje domina 73% das cadeiras da Câmara dos Deputados e faria refém qualquer um dos candidatos nas últimas eleições presidenciais: Marina Silva (PSB), Aécio Neves (PSDB) ou mesmo Dilma Rousseff (PT). Os ecos dos movimentos anti-Dilma e PT, que se fizeram ouvir em altíssimo e bom som, e representam um extrato da sociedade mais retrógrado da sociedade brasileira, pode se converter em base de apoio para aventuras autoritárias, uma vez que a confiança na política e nos partidos políticos é baixíssima (acesse os dados aqui:http://www.lage.ib.usp.br/manif/).

Lá e cá, retomando o artigo de Krugman, há algo mais valioso em jogo que transcende os valores da civilização consignados no contemporâneo Estado Democrático de Direito. Escreve o economista estadunidense: “A verdade é que uma grande parte do que acontece na política norte-americana é, no fundo, uma luta entre a democracia e a plutocracia. E não está nada claro que lado vai ganhar” (Fonte cit.). O resultado dessa contenda estratégica entre as bancadas BBBs e os trabalhadores brasileiros (e suas conquistas históricas) é, no contexto do Congresso Nacional, uma luta entre plutocracia e democracia.

A vitória de Cunha e seus comandados na primeira batalha, em relação ao PL 4330 (Terceirização), foi marcada por representativa mobilização dos trabalhadores, à exceção da Força Sindical (liderada pelo Solidariedade, partido com alta adesão nas bancadas BBBs), do indefectível deputado Paulinho da Força (SD-SP). Os desdobramentos dessa luta no Senado, nas ruas e praças, na pressão direta sobre o Executivo, caso haja aprovação naquela Casa, ainda são imprevisíveis. Ou como diria o filósofo Vladimir Safatle, resgatando Karl Marx: “A situação desesperadora da época na qual vivo me enche de esperanças". A ver.


(*) Jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB). É pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).

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