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Conselheiros do Carf são alvos de ações populistas


Carf da Receita Federal
O Carf é a única instância transparente no processo de formação do crédito tributário na esfera federal

A famosa metáfora “gritando fogo num teatro lotado” é de autoria do juiz Oliver Holmes, no caso Schenck vs. United States decidido pela Suprema Corte Americana em 1919, em que se discutiu a extensão do direito de liberdade de expressão na Constituição americana: até que ponto o pânico causado pela informação do “fogo!” no teatro pode inibir o direito à livre expressão de um fato? Pode a autoridade pública proibir que se divulgue que há fogo no teatro (leia-se divulgar suas informações internas), em nome do pânico que sua divulgação poderia causar? Em recente artigo, o prêmio Nobel Joseph Stiglitz[1], notável estudioso da Economia da Informação, retoma o argumento de Holmes para defender que na metáfora “gritar fogo em um teatro lotado”, a questão central não é “disponibilizar ou não” a informação, mas “como disponibilizá-la”: como avisar as pessoas que há fogo para que possam evacuar o teatro de modo ordenado.

Nesse sentido, importa destacar que o problema aqui analisado não está apenas no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), mas aparece no Carf, porque é a única instância transparente e, por isso, a mais democrática no processo de formação do crédito tributário. A patologia está na cultura do segredo da Receita Federal, que implica a falta de transparência: (i) das consultas fiscais, (ii) dos autos de infração e (iii) das decisões de 1ª instância das Delegacias Regionais de Julgamento.

Portanto, há fogo na Secretaria da Receita Federal, mas a fumaça aparece no Carf porque é a única instância transparente no processo de formação do crédito tributário na esfera federal. O fogo decorre da má qualidade dos autos de infração e da cega crença numa ideologia que confunde a presunção de validade emprestada provisoriamente aos autos de infração com a efetiva legalidade que se constitui através de atos de aplicação dos direitos aplicados em ambientes públicos e democráticos, sujeitos a controle social, como é o caso do órgão.

Instituições para quê?
São as instituições que ditam o grau de evolução e os limites em que os atores de uma sociedade operam, tornando inteligível a interconexão entre as regras do jogo e o comportamento dos diversos atores sociais. São as instituições políticas, econômicas e, principalmente as jurídicas, que, construídas pelo homem e garantidas pela segurança jurídica, alicerçam a democracia e alavancam o desenvolvimento econômico e social. Sem segurança jurídica e sem respeito às decisões definitivas — do Carf, por exemplo —, o Brasil está fadado ao fracasso: uma história que já conhecemos. A realidade é cruel e confirma que o sucesso de uma nação está estritamente vinculado à formação de uma economia institucional marcada pelo respeito à segurança jurídica: situação que cria ambiente atraente de negócios, encoraja investimentos e induz desenvolvimento.

A Administração Tributária é instituição estratégica do sistema tributário nacional, responsável pela aplicação, interpretação da legislação, fiscalização e cobrança dos créditos. Modificar a lei ou a Constituição não é suficiente para melhorar nosso sistema tributário: é preciso alterar também a forma de interpretá-las ou aplicá-las. A legalidade não se constrói apenas com leis, mas com atos de aplicação do Direito, que, por sua vez, são praticados por instituições de Estado. Daí a importância do Carf, orgão de julgamento que tem a última palavra da legalidade concreta na esfera administrativa pelo olhar inteligente e prático de experts que enxergam o Direito em íntima conexão com a realidade.

O Carf, com o apoio de Otacílio Cartaxo no período em que foi secretário da Receita Federal e durante sua gestão como presidente do conselho, deu passos importantes na sua história institucional e transparência como, por exemplo: (i) a edição do novo Regimento Interno do órgão, (ii) a instituição do Comitê de Seleção de Conselheiros e (iii) a implatação do processo administrativo fiscal eletrônico, o “e-Processo”, sistema que possibilita acesso permanente e imediato aos autos dos processos, reduzindo desperdícios com tempo e recursos.

Pesquisa do Núcleo de Estudos Fiscais/Direito GV confirma os inegáveis avanços institucionais do Carf: aponta, mediante entrevistas com players que lidam diretamente com o órgão, como advogados, empresas e autoridades públicas, que suas decisões são primordialmente técnicas e não políticas. Trata-se de órgão respeitável porque delibera sobre critérios jurídicos, solucionando tecnicamente conflitos tributários entre o Fisco e o contribuinte. Nessa lógica, o Carf não atua contra ou a favor da Receita Federal ou do contribuinte. O Carf é composto por experts justamente para encontrar e corrigir os excessos de poder perpetrados nos atos individuais de aplicação do Direito — no caso, os autos de infração. Atua como órgão diretivo e de controle da ação dos auditores da Receita Federal, realizando inestimável serviço público ao cidadão-contribuinte porque aclara imprecisões, resolve indeterminações e elimina contradições normativas, de modo a reduzir a contenciosidade do sistema.

Conclusões
O Ministério da Fazenda não pode decidir pela insubsistência do auto de infração em um momento (via Carf/Procuradoria Geral da Fazenda Nacional) e, na sequência, questionar sua própria decisão no Judiciário (via PGFN). Trata-se de situação institucional bipolar que revela confusão entre aplicar a legalidade do sistema ou apegar-se à precária presunção de legalidade do auto de infração. Com efeito, é absolutamente equívoca a percepção de que quando o Carf decide desfavoravelmente aos precários autos de infração está agindo contra a Receita Federal. Quando isso acontece é sinal de que o Carf está assumindo e cumprindo sua derradeira missão institucional: colaborar com a Receita Federal, estancando problemas com critérios técnicos, reduzindo a indústria do contencioso e tornando o Fisco mais célere e eficiente. Afinal, 96% da arrecadação Federal é espontânea.

A tese de lesão ao patrimônico público por omissão arrecadatória da União Federal, após julgamento do Carf que absolveu o contribuinte, não tem fundamento. É argumento que pretende suplantar o entendimento construído legitimamente pelo órgão, nos estritos limites de sua competência, ao tentar emplacar duvidoso “interesse público”. O entendimento institucional do Carf é patrimônio público maior da sociedade. Por isso, a autora das ações populares carece de interesse processual: não há dano ao patrimônio público, apenas miopia. O Código Tributário Nacional prescreve que o crédito tributário é extinto pela decisão administrativa irreformável. Portanto, o ovo da serpente das ações populares não está em sua juridicidade, mas na violência simbólica de coagir nossos conselheiros do Carf, difundindo o medo e a insegurança de exercer seus legítimos deveres (sem garantias) de árbitros imparciais perante a lei. É votar sempre pela Fazenda ou ser processado: caminho da mediocridande e do não Direito!

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal confirma o entendimento de que o controle judicial dos órgãos atípicos de julgamento pressupõe a existência de alguma nulidade, não incidindo nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal. Não é lícito ao Judiciário ou a quem quer que seja cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da lei. As decisões do Carf, quando o processo é finalizado, tornam-se definitivas. A PGFN, ao deixar de se opôr ao prosseguimento das ações, causa uma contradição que enfraquece a segurança jurídica, o Carf e coloca em questão sua própria existência.

É inacreditável que exista 33 dispositivos (seis artigos e 27 incisos) no Regimento Interno do Carf tratando dos deveres dos conselheiros (exercer a função com dignidade, ser imparcial, julgar com celeridade, não opinar publicamente, não exercer função incompatível, observar o devido processo legal etc), mas que, contudo, não haja qualquer alusão a direitos e garantias dos conselheiros. Não falta importância, estatura, história institucional ao Carf, nem falta expertise à “Tropa de Elite” dos conselheiros — o mais técnico e qualificado tribunal em matéria fiscal do Brasil. O Carf é frágil e está sendo afetado por essas 59 ações “populistas” porque falta maior respeito e garantias ao nobre exercício da função dos conselheiros.

Retomando a famosa metáfora que abre esse estudo, “gritando fogo num teatro lotado” de Oliver Holmes, aplicada por Joseph Stiglitz, pretendemos demostrar que a questão das 59 ações populares é apenas um reflexo do grau de transparência e democracia que o Carf alcançou.

Com efeito, não se trata de problema do autor das ações populares, nem do Carf, nem de seus conselheiros. Trata-se apenas do reflexo de um problema maior: a obsessão pelo sigilo na constituição do crédito nas instâncias inferiores da Receita Federal (decisões das DRJs) combinada com a importância do Carf em contraste com sua fragilidade institucional. Órgão destinado a resolver conflitos normativos que envolvem cifras bilionárias, mas que, ao mesmo tempo, é incapaz de amparar e oferecer as mínimas garantias para que seus conselheiros realizem sua missão, objetivos e visão de futuro.

[1] On Liberty, the Right to Know, and Public Discourse: The Role of Transparency in Public Life, Joseph E. Stiglitz, Senior Vice President and Chief Economist, The World Bank, Oxford Amnesty Lecture, Oxford, U.K., January 27, 1999, p. 19.

Eurico Marcos Diniz de Santi é mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, professor da Direito GV e coordenador da especialização em Direito Tributário da GVlaw e do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF/Direito GV).

Daniel Zugman é bacharel em Direito pela UFPR, mestrando na Direito GV e pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF/Direito GV).

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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