Indígenas do Pará revelam atrocidades do Exército
Por: Márcio Zonta*
A Comissão Nacional da Verdade recebeu a visita de indígenas da etnia Aikewara, que apresentaram um relatório expondo todas as violações cometidas pelo Exército brasileiro na época de caça aos guerrilheiros.
A história da Guerrilha do Araguaia já baseou filmes e livros, além de suscitar inúmeros debates entre pesquisadores, intelectuais e militantes. Entretanto, um dos episódios mais marcantes do período ditatorial brasileiro na década de 1970 não para de revelar novas faces.
O requinte de crueldade utilizado pelo Exército Brasileiro contra os jovens que se organizaram para treinamentos com armas, na região compreendida como do Bico do Papagaio – Pará, Maranhão e Tocantins – se estendeu a camponeses, indígenas e missionários religiosos que habitavam na localidade.
Na última semana, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), recebeu em Brasília (DF) a visita de indígenas da etnia Aikewara, também conhecidos como Suruí do Pará. Na ocasião, eles apresentaram um relatório expondo todas as violações cometidas pelo Exército brasileiro na época de caça aos guerrilheiros.
A rotina dos povos Aikewara foi inteiramente interrompida. Passaram a ser prisioneiros de guerra, ter cerceamento de ir e vir, além da convivência com a violência desmedida contra as comunidades por onde os homens da Forças Armadas andaram no sul e sudeste paraense.
Todo esse compêndio de informações inéditas que chegam agora às mãos da CNV, e passa a ser conhecida publicamente, quase 40 anos depois do ocorrido, é fruto de um trabalho de aproximadamente 20 anos realizado pela antropóloga Iara Ferraz.
“Trata-se de uma investigação documental, bibliográfica da minha convivência por muitos anos, especificamente, com essa etnia. Por isso o relatório contém longos e detalhados depoimentos”, explica a autora do estudo.
Fome
Na reunião das lideranças indígenas com Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade e responsável pela apuração de denúncias de desrespeito aos direitos humanos destinados a indígenas e camponeses foi lida uma síntese das acusações.
Segundo relatado, de 1972 a 1974, os Aikewara tiveram seu território totalmente ocupado pela repressão militar, proibindo as famílias de prover as principais atividades de subsistência. Os índios ficaram impossibilitados de pescar, caçar, coletar e irem à roça. “Nunca tínhamos passado fome, mas quando o Exército invadiu nossas terras e acabaram com nossas atividades foi difícil se alimentar, passamos muita fome”, rememora a índia Teriwera Suruí.
À época, os indígenas tiveram a benfeitoria de arroz e milho, assim como pertences e aldeias incendiados. Tendo suas bases materiais e culturais destruídas pelos militares.
Prisioneiros de Guerra
Os índios ainda mencionaram que foram tratados como prisioneiros de guerra, feitos de guias nas matas para busca dos guerrilheiros e colocados como escudos humanos, quando na iminência de confrontos.
Enquanto os homens saiam, as mulheres da etnia eram vigiadas constantemente por membros do Exército na aldeia, junto a crianças e idosos. Conforme o relato dos índios, o recrutamento era feito a força e com total aval da Fundação Nacional dos Índios (Funai). “Nessa época, eu estava grávida de gêmeos e perdi por causa dos sustos e por estar sempre na mira de armas, além de escutar muitos tiros na mata”, conta Teriwera.
Para Maria Rita Kehl, que esteve duas vezes na área da etnia em 2012, essas revelações dos indígenas confere uma vertente de crime dos militares, ainda mais obscura, na história da ditadura civil- militar no Brasil. “Vai ser de muito valor para o capítulo do relatório que tratará das graves violações de direitos humanos contra índios e camponeses, pois será junto com o dos Xavante Marãiwatsédé, um dos únicos relatos feito pelos próprios indígenas”.
A antropóloga Iara Ferraz observa que situação agressiva semelhante também “ocorreu com os Waimiri – Atroari, no Amazonas”.
Sequelas
A etnia sente até hoje o malefícios da repressão vivida no passado. Winorru Suruí, um dos depoentes do documento aponta a ocupação militar como principal motivadora dos problemas vividos na contemporaneidade. “Após a guerrilha, muita gente entrou na nossa terra. No nosso atual território, não temos mais acesso ao barro e perdemos a cultura da cerâmica”, reclama.
Os indígenas cobram uma indenização do governo brasileiro. “Temos que ser ressarcido pela violência sofrida dentro e fora de casa sem saber o porquê da presença dos homens da aldeia na caçada de pessoas”, diz Winorru.
Pela culminância da intervenção militar, as 350 famílias dos povos Aikewara foram distribuídas em duas aldeias, Sororó e Itahy. Ambas situadas nos municípios paraenses de Brejo Grande do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Marabá.
Um processo de revisão territorial engavetado há mais de 20 anos pela Funai passa, após as denúncias, a aguardar uma portaria declaratória do Ministro da Justiça.
Testemunha ocular
Os personagens da Guerrilha do Araguaia, que ficaram conhecidos no Brasil graças aos trabalhos de remontes históricos de entidades, movimentos sociais e iniciativas governamentais foram muito próximos dos Aikewara. Muitas vezes os indígenas testemunharam mortes e tortura contra os militantes guerrilheiros. Uma das passagens contadas pelos que viveram tais momentos, condiz ao camponês conhecido como Domingos.
O rapaz teria chegado à aldeia com uma corda amarrada no pescoço, prestes a morrer, depois de uma tentativa de enforcamento provocada pelos militares. Os indígenas trataram durante muitos dias os ferimentos de Domingos, que também foi torturado. O motivo de tanta violência empregada a Domingos resultou de um pedido de socorro para que Dinalva Oliveira Teixeira (Dina Teixeira) fizesse o parto de sua mulher.
Solidariedade
Embora os membros da guerrilha fossem caçados como animais e disseminados como terroristas de alta periculosidade, muitos indígenas e camponeses da região só tiveram acessos a orientações de saúde e atendimento médico depois que os guerrilheiros chegaram e iniciaram determinados procedimentos.
É o caso de João Carlos Haas Sobrinho, conhecido como Doutor Juca. Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul chegou ao Araguaia vindo do Maranhão. Juca atendia a população, sendo extremamente respeitado pelos caboclos locais ao prestar auxílio na área da saúde de Marabá e Xambioá.
O comandante médico-militar foi morto em combate em 30 de setembro de 1972. Seu corpo nunca foi encontrado e também é dado como desaparecido político.
Exemplo
As histórias de terror vividas pelos indígenas são inúmeras e servia como forma de exemplo para aqueles que ajudavam os militantes. Consta na memória dos povos Aikewara o ocorrido horrendo com o mais carismático e temido guerrilheiro do Araguaia.
Negro, forte, quase dois metros de altura, ex-campeão carioca de boxe, Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão) foi morto por uma patrulha militar em janeiro de 1974. Seu cadáver foi pendurado num helicóptero e exibido num sobrevôo pelos povoados do Bico do Papagaio. Decapitado, seu corpo até hoje não foi encontrado, sendo considerado desaparecido político.
Genocídio de camponeses
Assim como os indígenas do Bico do Papagaio sofreram diversos tipos de agressão dos agentes do Estado, os camponeses também foram acometidos nas mesmas proporções. Estima-se que 350 camponeses foram mortos pelo Exército na Guerrilha do Araguaia.
Ademais, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça acusou a perda de terras de diversas famílias no Pará ocasionada pelas práticas repressivas do regime ditatorial. Entre os anos de 1960 e o início da década de 1970, cerca de 600 famílias camponesas foram vítimas de diversos crimes cometidos pelo Estado brasileiro no sul do Pará.
Indenização
Até o momento quatro famílias camponesas do município de Marabá foram indenizadas pela perda de terras. Outros cinco pedidos de indenização, nos estados do Pará, Maranhão e Tocantins, estão sendo analisados pelo governo federal.
Pedro Matos do Nascimento foi um dos compensados pela Comissão da Anistia. O camponês ficou preso durante 45 dias nos findos dos anos de 1960. Ele conta que muitas famílias foram penalizadas pela perda de suas terras por estabelecerem relações com os guerrilheiros. “O exército achou que eu colaborava com a guerrilha, mas eu dava comida, oferecia de dormir”, diz.
Para vice-presidente da Comissão de Anistia, Sueli Bellato, a amizade entre guerrilheiros que iniciaram a luta armada na região do rio Araguaia e os camponeses foi intensa. “Existiu um intercâmbio de conhecimento entre os camponeses e os militantes do PcdoB, que organizou a Guerrilha”.
Fonte: Agência Brasil de Fato
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