Crônicas da Vida Real: Seu Chiquinho e o fura-saco
Por: David Marinho*
Muitas são as situações que acontecem no dia a dia, como parte de um filme da nossa vida, isso significa que cada um tem material suficiente para qualquer produtor elaborar um filme. Neste conto como crônica da vida real, tratarei de um cidadão que conheci na Comunidade de Irurama (Eixo Forte) de nome; Francisco Alves Lima, ex-soldado da borracha, mas carinhosamente chamado por seus amigos da comunidade de “Seu Chiquinho”, acredito pela sua compleição física, de estatura pequena, magro, mas resistente para o trabalho na roça quando criou dez filhos juntamente com sua esposa Dona Raimunda, sem o saber das letras, mas cheio da sabedoria popular, honesto e enérgico em defender seus princípios morais e éticos de cidadão.
Certa feita, já com seus 58 anos e uma cegueira em um de seus olhos, perdido por uma catarata mal tratada, foi aconselhado por amigos a procurar o INPS (hoje INSS), para uma perícia médica a fim de providenciar sua aposentadoria. Nessa tentativa foi vítima de sua honestidade e sinceridade, pois chegando ao consultório do médico perito, foi perguntado por este:
- Seu Francisco, o que é que o senhor tem?
O mesmo respondeu na bucha:
- Ora Doutor! Se eu soubesse o que tenho, não teria vindo até o senhor!
O médico desconcertado tentou amenizar o incidente, olhando-o melhor, e notou que ele tinha um olho perdido pela catarata, então continuou:
- Já sei Seu Francisco, o senhor quer se aposentar por enxergar pouco, tendo somente uma vista, né?
“Seu Chiquinho”, talvez se sentindo um pouco ofendido, responde:
- Aí é que o senhor se engana doutor! - Mesmo eu tendo somente um olho bom, se duvidar enxergo melhor que o senhor! - E como caço também, não preciso nem fechar o olho para atirar!
O doutor vendo que estaria difícil continuar um diálogo com “Seu Chiquinho”, dentro da sua sinceridade ou orgulho caboclo, resolveu encerrar por ali mesmo a conversa, sentenciando:
- Então Seu Francisco, o senhor não precisa se aposentar, pois está um “garoto” e muito bem de saúde! Está dispensado e passe bem!
- Passe bem o senhor! Era só o que me faltava. Oxem! Responde aborrecido “Seu Chiquinho”, saindo.
“Seu Chiquinho” era um dos feitores de farinha mais gostosa do Irurama, e ficava puto da vida quando nas feiras lhe perguntavam se sua farinha era do Cucurunã! Respondia então, bravo:
- Que Cucurunã porra nenhuma! Esta é do Irurama! - A do Cucurunã é pintada com mangarataia, a minha é amarelinha por natureza!
Quando chegava à feira para vendê-la, apareciam os atravessadores querendo comprar sua farinha, e vinham com seus “furadores metálicos” para tirar uma amostra. Era outra bronca de “Seu Chiquinho”:
- Negativo! Tu não vai furar meu saco! Se quiser comprar minha farinha será sem furar o saco! Que eu já estou de saco cheio! Que saco!!!
Mas sua farinha era realmente sem dúvida, entre as outras da comunidade, muito boa também!
Apesar de não ler nem escrever, quando os compradores iam fazer a conta do negócio na máquina de calcular, ele já tinha feito a conta de cabeça! Característica de muitas pessoas humildes do interior, mas que dominam a matemática aplicada com excelência...
Ainda nos anos 60, além de ele mesmo fazer sua farinha, pela precariedade dos ramais do hoje conhecido Eixo-Forte, descia ainda de madrugada com dois sacos de farinha nas costas no cambão, juntamente com sua filha mais velha de dez anos, hoje minha esposa; do Irurama até o porto do Carapanarí (8 Km), onde no verão pegava sua canoa, colocava a filha na popa da mesma pilotando com um remo e vinha puxando-a por uma corda pela praia até a cidade por causa do forte vento, pouco remava para chegar ao mercado. Na volta com o vento varzeiro favorável, esticava uma pequena vela bijarrona no mastro de sua montaria, e singrava o rio Tapajós, tirando da ponta do antigo Petróleo Sabbá direto na Ponta da Maria José, depois direto ao Lago do Carapanarí, e subia novamente para o Irurama com sacos nas costas cheio de mercadorias para o sustento de sua família. Essa era a dura vida de nossos heróis agricultores, para que não faltassem alguns produtos em nossas mesas.
Hoje é muito mais fácil trazer produtos dessa região, pois os ônibus pegam essa produção praticamente nas portas das casas, porém naquele tempo as coisas eram mais difíceis e sacrificadas. Mas mesmo assim, “Seu Chiquinho” criou seus filhos com muito trabalho, honra e honestidade.
Como bom nordestino, ao merendar no mercado, não abria mão de um grande copo de garapa acompanhado de um baita pão doce com manteiga, na barraca de um cidadão que perguntava aos seus clientes sobre a manteiga:
- Você quer com uma passada, ou duas passadas?
A maioria dos clientes preferia uma só passada, pois os que pediam duas, saiam no prejuízo, já que o cidadão colocava a manteiga com uma levada, e na segunda de volta ele tirava a manteiga novamente...
Casos pitorescos de nossa antiga e saudosa Santarém dos tempos que não voltam mais...
*É Projetista e Gestor Ambiental
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