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Um quase direito para um quase humano

Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase […]
Sarah Westphal [1]
Em março desse ano estive no encontro da Associação dos Juízes pela Democracia – AJD – e em sua palestra o Vice-reitor da Universidade Estadual da Bahia, o Professor Fábio Félix, fez alguns questionamentos: Porque é tão difícil respeitar os Direitos Humanos? Porque preferimos um “quase” Direito a um Direito pleno? Quem é “humano”? Quem tem direito a ter Direito? E como exemplo, dentre outros, ele citou uma frase muito comum: “Não sou preconceituoso nem racista, tenho ATÉ um amigo negro”.
O racismo ainda transita no universo contemporâneo com muita frequência. As ações promovidas no intuito de definitivamente abolir essa prática, infelizmente, ainda não alcançaram todos os espaços sociais. O fato de, ATÉ, termos conhecimento dos nossos direitos e deveres não significa dizer que também temos a consciência de que no processo moderno de “(des) construção” social o velho preconceito que define ou “qualifica” os “humanos” é desenraizado para se reenraizar de outras formas, ou seja, o momento atual se caracteriza pela dissolução de “antigas” ordens “sólidas” para emersão de novos padrões sociais balizados por uma individualização da vida que permanece repetindo alguns ingredientes da velha ordem.
Assim, nessa individualização social que a frase “tenho ATÉ um amigo negro” encontra sustentação, percebe-se que a ausência de referências sociais e culturais coerentes, estimula, cada vez mais, a formação de uma sociedade seletiva econômica e socialmente que aceita e acha “normal” se questionar quem tem ou não direito a ter Direito. Este paradoxo moderno que prioriza os direitos humanos, elevando-os a princípio fundamental da república, ao mesmo tempo em que fecha os olhos para o desrespeito a esses direitos, possibilita a consolidação de uma sociedade “morna”, na qual sobra preconceito e falta respeito, de uma sociedade de meios termos, formada pelos quase “humanos”!
A proteção efetiva dos direitos humanos é um desafio constante, uma vez que depende não só da sua positivação, mas, e principalmente, de um amplo e permanente processo de conscientização social. Por isso, em seu livro Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt [2] faz uma análise que deixa claro que essa conscientização se perde nas persistentes situações sociais, políticas e econômicas que, mesmo em um regime democrático, contribuem para a superficialidade e ubiquidade social, fazendo com que o homem esteja, ao mesmo tempo, em todos os lugares e em lugar nenhum. Dessa forma, o respeito, a preocupação e a garantia aos direitos humanos se torna cada dia menos relevante, mais excludente e intolerável. Como disse Hannah Arendt: “os homens normais não sabem que tudo é possível.” [3]
Bem, se os homens ditos “normais” não conseguem interiorizar ações, comportamentos e posturas que assegurem os direitos para a construção de uma cidadania plena ou para uma convivência coletiva com igualdade de dignidade, como poderemos dizer que a construção da sociedade moderna está alicerçada no desenraizar de antigas ordens sólidas e no processo de afirmação dos direitos humanos? Diante de tantos preconceitos ainda “impregnado” no (in) consciente coletivo, acredito ser mais coerente dizermos que a construção do mundo atual está baseada no ônus e na responsabilidade de vivermos o quase direito para os quase humanos.
Parafraseando Sarah Westphal, citada na epígrafe, para os erros há perdão; para os fracassos, chance. De nada adianta economizar alma! Não deixe que a rotina te acomode e que o medo te impeça. Desconfie do destino, pois quem quase morre está vivo, quem quase vive já morreu. Quem tem um quase direito não tem direito algum e quem é um quase “humano” nunca será gente!
[2] ARENDT, Hannah, Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
[3] ARENDT, Hannah, Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 337.

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