A Mídia tem memória curta
(*) Samuel Lima
Especial para o blog
Um fato político rendeu muito espaço na mídia comercial brasileira e fez a festa dos abutres das bolsas de valores: o rebaixamento da nota de risco da Petrobras (o chamado grau de investimento), decretado pela agência de rating Moody’s Investor Service (Moody's), dos EUA, na terça passada (24/02). As digitais dessa empresa, e das congêneres estadunidenses Standard & Poor´s (S&P) e Fitch Ratings (Fitch) – que controlam esse tipo de serviço -, estão presentes também na crise financeira de 2008, que ganhou dimensão mundial a partir de setembro daquele ano.
A notícia ganhou destaque com um claro viés político. Apresentadores de telejornais das principais redes, comentaristas políticos e econômicos, colunistas e editores, comemoraram como se fora um gol em final de Copa do Mundo. Agora só falta rebaixar a nota do título da dívida soberana do Brasil e anular as eleições de outubro/novembro de 2014, conduzindo o candidato derrotado à Presidência da República.
Neste caso, o comportamento da chamada “grande imprensa” não reflete apenas um viés político-ideológico. A fábrica de desinformação, na qual estão ancoradas as atividades das famílias que dominam o mercado jornalístico no país, reflete mais que o “vício do cachimbo” – aquele que resulta na “boca torta”. Observei com atenção o que foi noticiado, acompanhando também a sucessão de notícias pela internet e nos telejornais (em rede nacional).
Para ser exato, caro/a leitor/a, encontrei apenas uma pequena notícia ao papel desempenhado pela Moody’s (S&P e Fitch) no megaprocesso de especulação que custou (e ainda custa para dezenas de economias, sobretudo àquelas dos países periféricos) caríssimo à economia globalizada. Foi n’O Estadão de S. Paulo, na edição digital de 1º de fevereiro (às 20h50), três semanas antes do rebaixamento da nota da Petrobras: “Justiça investiga Moody's sobre atuação antes da crise de 2008” (Confira aqui: http://migre.me/oP351).
O texto publicado é preciso e claro: “O Departamento de Justiça dos Estados Unidos abriu uma investigação sobre a atuação da Moody's Investors Service no período que antecedeu a crise de 2008, afirmaram fontes próximas ao caso. Naqueles anos, a Moody's e a S&P deram notas AAA para esses títulos, tornando-os elegíveis mesmo para investidores com perfil conservador. Quando o mercado imobiliário ruiu, perdas em investimentos relacionados a esses títulos ajudaram a aprofundar a crise” (Fonte cit.). Na semana que passou ninguém fez referência a essa informação, nem mesmo o Estadão.
Faço uma brevíssima comparação entre dois veículos distintos, que são iguais na exploração sensacionalista (manchetes) do fato, mas que expressam conteúdos ligeiramente distintos. Falo do Jornal da Globo (JG, ed. 24/02/3015) e a Folha de S. Paulo (FSP, ed. impressa de 25/02/2015). Comparemos as manchetes de ambos para o mesmo fato: No JG, em letras garrafais, o indefectível apresentador William Waack comemorava: “Petrobras perde grau de investimento da Moody’s por dívidas e corrupção” (Leia o texto e assista ao vídeo aqui:http://migre.me/oP1Y9). Na Folha, em letras garrafais: “Crise e corrupção tiram selo de bom pagador da Petrobras” (a íntegra aqui: http://migre.me/oP45H).
Nos textos, um abre muito semelhante: no JG: “O tamanho da dívida e do escândalo de corrupção fizeram a Petrobras perder o grau de investimento por uma das principais agencias internacionais de classificação de risco, a Moody’s. Agora a Petrobras é considerada uma empresa de grau especulativo. Ou seja, pouco segura para investidores” (cit.); na Folha: “A Petrobras, maior estatal brasileira e sexta maior petrolífera do mundo, perdeu nesta terça (24) o chamado grau de investimento, espécie de selo de local seguro para investir, da agência de classificação de riscos Moody's, considerada uma das mais austeras em suas avaliações” (cit.).
O curioso é que os mesmos repórteres da Folha assinaram um texto, algumas horas antes (ed. online 24/02, às 20h57, atualizado às 22h18 – acesse aqui: http://migre.me/oP2dG), com enfoque sensivelmente diverso, na abertura da reportagem, com as justificativas supostamente apresentadas pela agência de especulação Moody’s. Vejamos: a) Versão online (24/02, cit.): “O motivo foi a crescente dificuldade de a empresa conseguir publicar o balanço auditado, levantar dinheiro no mercado de capitais e o impacto que isso terá em seu caixa nas próximas semanas” (cit.); b) Na edição de 25/02, o motivo já era outro: “Os motivos foram preocupação crescente em relação às investigações de corrupção, o endividamento da empresa e o atraso na divulgação do balanço auditado” (cit.)
A especulação que se seguiu, no mercado de capitais, já no dia 25 de fevereiro não deixa dúvidas sobre o caráter da decisão da agência Moody’s. Só para ficar num exemplo singelo, na Folha (ed. online, 25/02), uma síntese: “Petrobras desaba após rebaixamento e derruba Bolsa; dólar avança” (leia a reportagem completa: http://migre.me/oP2m3).
Reproduzo um trecho: “As ações da Petrobras operam com forte queda nesta quarta-feira (25), um dia após a agência de classificação de risco Moody's rebaixar a nota de crédito da empresa. Com a queda dos papéis, a Bolsa brasileira tem desvalorização superior a 1%. As ações da Petrobras operam com forte queda nesta sessão. Às 15h49, os papéis preferenciais, mais negociados e sem direito a voto, caíam 5,98%, a R$ 9,27. As ações ordinárias, com direito a voto, tinham queda de 5,33%, a R$ 9,22, no mesmo horário. Os papéis (ordinários e preferenciais) chegaram a ter desvalorização superior a 7% no início dos negócios” (cit.). Essa é uma faceta do jogo da mídia-especuladores-mercado, em geral, contra o interesse da sociedade.
Uma noção muito fecunda e vertical desse papel abjeto e nocivo das chamadas “agências de risco” está fielmente retratada no documentário “Trabalho Interno” (Inside Job), assinado por Charles Ferguson, cujo objeto é a crise econômica mundial de 2008 (assista ao trailer aqui:http://migre.me/oP6eg).
Para manter viva a memória dos fatos históricos recentes, jogando luz sobre o papel da Moody’s (e demais agências) nessa crise, cito alguns dados de Ferguson: “Quando George W. Bush tomou posse em janeiro de 2001, o setor financeiro nos EUA era mais lucrativo, concretado e poderoso que nunca. Dominavam o setor cinco bancos de investimento (Goldman Sachs, Mongan Stanley, Lehman Brothers, Merrill Lynch e Bear Stearns), dois conglomerados financeiros (Citigroup e JP Morgan), três seguradoras de títulos (AIG, MBIA e AMBAC) e três agências de rating (Moody's, Standard & Poor´s e Fitch)”. Observe o caro leitor que as tais “agências de risco” são parte do sistema financeiro, agem em sintonia com os interesses dos banqueiros, grandes investidores e especuladores a granel. O “mercado”, essa entidade invisível, era dominado por 13 organizações nos EUA, sem mais.
E prossegue Ferguson, explicitando mais ainda o jogo das três agências: “Moody’s, S&P e Fitch ganharam bilhões de dólares dando notas altas a papéis arriscados. Moody’s, a maior delas, quadruplicou seus lucros de 2000 a 2007” (cit.). Bill Ackman, gestor de fundos de hedge (um tipo de seguro), acrescenta: “Moody’s e S&P são pagas para emitir relatórios de classificação. E quanto mais davam notas AAA (triplo A, o maior grau de investimento) a títulos estruturados, maiores eram seus lucros trimestrais. Imagine dizer ao New York Times: ‘$ 500 mil por um artigo favorável, senão não pago nada’”.
Jerome Fons, ex-diretor gerente da Moody’s, entrevistado por Ferguson no documentário, confessa, com um quê de autocrítica: “As agências de rating poderiam ter acabado com a festa e dito: ‘Sinto muito, vamos apertar os critérios’, reduzindo no ato o financiamento para mutuários arriscados”. Mas, longe disso, tais empresas continuaram a alimentar a bolha especulativa que levaria a economia global à beira do abismo, amargando um prejuízo mundial estimado em US$ 20 trilhões.
O jornal Público (de Lisboa, Portugal), postou recentemente (ed. online 09/02/2015) uma reportagem cujo título é altamente esclarecedor: “O preço pago pelos ratings que criaram a crise” (leia o texto completo: http://migre.me/oP2rI). A notícia dá conta de um acordo envolvendo a S&P: “O acordo alcançado na terça-feira entre a Standards & Poor’s e o Departamento de Justiça, mais de uma dúzia de Estados e o maior fundo de pensões dos Estados Unidos, no valor de 1,5 bilhões de dólares, vai permitir à maior agência de rating a nível mundial ultrapassar uma dolorosa batalha legal, mas pagando um preço muito elevado (fonte cit.)”.
O jornal detalhava um pouco mais a base do acordo e citava a Moody’s, que sofre igual processo: “A Standard & Poor’s, pertencente ao grupo McGraw Hill Financial Inc., irá despender mais do que o equivalente aos lucros de um ano para fechar os processos em que a empresa era acusada de ter inflacionado a notação das obrigações de hipotecas subprime que estiveram no centro da crise financeira de 2008. (...) Num processo separado, o Departamento de Justiça está a tentar avançar com uma investigação que já dura há mais de cinco anos para tentar provar que a Secção de Investidores da Moody’s Investors Services inflacionou as notações durante o “boom” imobiliário dos Estados Unidos”. A informação estava disponível em agências como a Bloomberg, fonte da matéria do Público. Em última análise, o acordo da S&P com o Estado nos EUA (e um fundo de pensão) para fugir da condenação é um atestado de conduta desonesta e criminosa.
O jornalista Leão Serva (em sua obra “Jornalismo e desinformação”, ed. Senac/SP, 2001) descreve esse tipo de atuação da mídia tradicional que se conecta diretamente com o sentido desta reflexão: “O jornalismo tal como o conhecemos hoje omite as circunstâncias determinantes dos fatos. Os meios de informação, portanto, criam clones dos fatos, parecidos com seu objeto apenas o suficiente para que haja verossimilhança. (...) São fatos sem gravidez, sem história, sem memória”.
A mídia finge amnésia e mantém sua linha política agindo como se fora um partido institucional de oposição ao governo federal, desenhando sempre o pior cenário possível. Reza o senso comum que o povo brasileiro tem “memória curta”. Mas esse tipo de episódio evidencia que a mídia também tem sua memória curta. Ou seria seletiva? O/a leitor/a só encontrará algum artigo analítico sobre o tema nos blogs progressistas. Na mídia comercial, exceto a nota d’O Estadão três semanas antes da decisão da Moody’s, nenhuma linha sobre o papel das agências de risco na crise financeira mundial, cujos impactos ainda não se dissiparam completamente, sete anos depois...
(*) Jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB). É pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).
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